Helenice caminha todas as manhãs. Quatro quarteirões até a parada de ônibus em um ponto movimentado da cidade. O trajeto, cheio de curvas e obstáculos, se torna a cada dia algo mais crucial para a jovem recém-saída da faculdade.
A moça é loira e tem cabelos longos. Alisados e pintados, como é peculiar na sua geração. Mas o que chama atenção em seu rosto é a sutileza do sorriso, amalgamado com um vibrante aparelho em tons de cinza e rosa pink.
Ela entra cedo no trabalho. Batalhou por muito tempo uma vaga neste posto. As más línguas dizem que Helenice precisou utilizar de suas curvas e ofereceu horas-extras na cama de um dos chefes. Tudo maldade. As colegas de hoje em dia é que não sabem respeitar a reclusão e a seriedade de uma menina predestinada ao trabalho.
Ela ainda não sabe, mas odeia o que faz. Acha digno ocupar um posto em uma das mais limpas clínicas de veterinária da Capital. Diz que “nasceu para servir” e nem percebe que seu “slogan” apetece o gosto dos clientes, que abusam do seu carisma. Helenice sorri, mas não se assombra. No fundo de sua alma está o sonho de ter seu próprio negócio. Cuidar da sua própria matilha.
A jovem sai feliz, saltitante em passarela em plena 5h30 da manhã. De sua casa até o trabalho são no mínimo 45 minutos de corpos suados, rostos tristes e cansados. Ela não os percebe muito bem porque se distrais com o celular que transmite a programação do rádio. Gosta de ouvir as notícias. Para alguém de sua origem, poder falar de vários assuntos é sinal de inteligência, de reclusão. É ser uma grande exceção em um mundo repleto de coincidências. Mas ela não é diferente, pelo contrário. Helenice não sabe, mas está em todos os lugares.
Nos 15 minutos que separam Helenice de seu destino ela gosta de pensar na vida. Mesmo sem querer. O que o dia lhe trará? Por que o mendigo dorme na rua? Por que não tem tempo de ir ao banco resolver aquela pendência chata? Percebe o quanto está cansada. É o destino. E assim passam questões de todas as grandezas que, caso analisadas com maior precisão, poderiam oferecer a menina um mapa da sua própria existência. Aquele buraco-negro que todos têm durante a vida e não sabem o que fazer. Jogar-se na escuridão ou se jogar na escuridão? “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Como um flash, tudo se esvai e uma nova futilidade vem à cabeça.
Os quadris balançam. Uma gota de sensualidade que persiste no corpo de Helenice. Sua mãe a ensinou os “pudores” que fazem uma mulher ser respeitada em um mundo onde o sexo pode transformar tudo. Ela sabe que as calças jeans, por mais sufocantes que sejam, fazem parte do protocolo. “Preferiria um vestido”, martelava em seu subconsciente.
No caminho, se deparava com alguns rostos conhecidos. As velhinhas de sempre que levavam o cachorro para passear, o entregador de jornal, o vigia da loja e o pedinte da esquina. Todos tão íntimos, compartilhando o único instinto de proximidade que resiste na liquidez mundana: a vontade. Helenice pensa que todos aqueles personagens não sabem nada uns dos outros, mas sobrevivem com a esperança de que os laços imaginários ainda são capazes da transformação. Que bobagem!
Helenice caminha, está a dois quarteirões do ponto do transporte. A mente voa com o vento e as primeiras nuvens da estação de fevereiro. O mundo paira em sua cabeça e ela vai despercebida. “Sou feliz?”. Anda, anda, anda até a esquina. Despercebida parte em direção ao outro lado sem reparar o vermelho no sinal. Um barulho agudo. Um cheiro de morte sobe.
A jovem está parada, olhos arregalados. “Está louca, minha filha?!”. Foi por um triz. Mesmo assustada, abaixa a cabeça e prossegue ao seu destino. Sente vergonha do erro, mas caminha. Alguém balbucia algo que não é importante e a moça se benze. Lá vem seu ônibus. “Será que sou feliz?”.
Helenice subiu no coletivo por mais dois dias, e nunca mais foi vista na caminhada matinal.
Pois é. Dentro de cada um, uma vida... e nem percebemos as pessoas que transitam ao nosso redor. Beijos.
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