segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Valsa das estrelas


Ela era pura. Brilhante. Uma promissora musicista em início de carreira. As professoras da aula de violino sempre a consideraram um talento nato e a lapidaram precisamente como um diamante para que ela chegasse àquele momento. 

Não se fazendo rogada mandou reproduzir um dos mais belos trajes já vistos na sua província fria. Modelo copiado de um princesa de outro país. Chamava a atenção os detalhes de cristais no pano branco, que destacavam ainda mais sua virginal tez. 

O salão estava abarrotado da mais nobre fidalguia daquele lugar mediano. Os homens usavam ternos comuns para a época, as damas se debruçavam sobre seus largos ombros em busca de casamento. Nem aquele mais esquecido ficava à toa numa cerimônia como aquela. Porém, todas as meninas desejaram por um minuto ser ela, que entrou triunfante para tocar a canção dos noivos.

Já ele sempre passou despercebido. Encarando a todos com os olhos para o chão. Era incomum ser estranho naquela época. Recluso e observador amava a arte neoclássica. Apaixonou-se pela forma muito cedo, vendo sua mãe viúva crescer como mulher através dos pincéis. Como todos se admirou da beleza da violinista e sonhou viver mil e uma noites de paixão nos braços daquela deusa. Sua estrela!
Com muita delicadeza, ela puxou seu instrumento e apeteceu os paladares com "Sunday Morning" de Tchaikovsky. Após o último acorde, sorriu para alguém especial. Magnifíca como sempre arrancou aplausos dos presentes e com um gesto humilde agradeceu e se reitrou. Aquele não era seu lugar, apesar de que o irmão da noiva a convidou para ser sua acompanhante. Só famílias muito nobres poderiam conceber tal evento. Ela rejeitou. Seus encantos já tinham um dono, que dinheiro nenhum poderia torná-lo mais brilhante.

A linda musicista e o estranho observador velavam um romance escondido desde a infância. Talvez apenas os dois poderiam se completar nessa vida. Deixaram o salão nobre e foram para o alto de uma serra, cantar às estrelas. Amaram-se. Despertaram e se amaram novamente. Nada poderia ser perfeito.
Com os olhos marejados, ele fez juras de amor eterno à sua musa. Pensou em lindos passeios, em retratá-la em suas obras. Prometeu filhos e bonança, depois de uma longa vida sofrida. Foi-se.



Na manhã seguinte, ela foi acordada mais cedo com o barulho da porta. Era sua gorda e generosa mãe. Ela trazia flores. Os noivos a agradeciam pela impecável trilha, mas lamentavam sua saída precoce do baile. Na outra mão, trazia um terço. Um automóvel, recente naquelas terras havia atingido fatalmente o namoradinho. O impacto o fez tomar rumo contrário e ascender ao céu. Seu Davi havia partido.
Sem pestanejar ela pegou o vestido branco, com cristais. Seu instrumento preferido e subiu a serra onde vivera a noite mais intensa de sua vida. Lá tocou a mesma "Sunday Morning" da noite passada, olhando para o céus como se seu público fossem as estrelas. Era dia pleno, ela nem se importava.

E assim fez durante os demais 46 anos de sua vida. Todas as manhãs, vestia a mesma roupa acinzentada do tempo, pegava o violino (mantido em perfeito estado pela família) e corria para a serra, se apresentar para as estrelas. O mesmo ritual se repetiu durante esses longos anos. Tão enfática, não se importou com sua cara enrugada, seus dentes que lhe faltavam, muito menos com seus poucos cabelos. Quando estava ali sorria como na juventude e valsava como uma delirante embriagada de felicidades depois de um dos bailinhos da cidade.

Gerações se divertiram com ela durante esse tempo. Moleques atiravam pedras. Meninas moças tinham medo de cruzar com ela. Nada tinha importância. Naquele estado ela era feliz, pois tocava para seu público mais querido.

O ritual se repetia à mesma hora, todos os dias. Até que num 22 de março, quando tentou puxar uma nota da parte mais tensa da música representativa, perdeu o compasso. Atrapalhou-se e errou. Parou por alguns instantes como se estivesse diante do breu. Olhou inquieta para o céu. Percebia que as estrelas riam dela. Seu público fiel já não se importava com sua arte. A musicista estava ultrapassada. Pela primeira vez, desde a morte de seu amor, ela chorou. Depois da terceira lágrima, respirou fundo e se jogou do alto da serra.


"Ismália?! Ora dizeis ouvir estrelas! Certo perdeste o senso!"

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